sexta-feira, 24 de maio de 2013

Como o óxido nítrico sinaliza e induz mudanças nas células?


       Depois de explicar, na última postagem, a estrutura e propriedades químicas do óxido nítrico, bem como algumas de suas funções em organismos vivos e a maneira como ele é produzido pelo metabolismo humano, cabe agora esclarecer o exato mecanismo que permite essa molécula produzir alterações no conjunto de reações químicas no interior das células e, assim, alterar processos fisiológicos.
       Para tanto, é preciso entender como se produz um segundo mensageiro[1] de extrema importância para a regulação do metabolismo: o monofosfato cíclico de 3',5'-guanosina (também conhecido por GMP cíclico ou, simplesmente, cGMP). Esse mensageiro é um nucleotídio, composto por guanina (uma base nitrogenada do grupo das purinas, por possuir anel duplo) ligada ao carbono 1'de uma ribose (uma pentose - monossacarídio com 5 átomos de carbono), a qual se liga também a um grupo fosfato pelo carbono 5' e pelo 3'(da dupla associação com esse grupo vem a caracterização como cíclico). A produção desse nucleotídio mensageiro é catalisada por um grupo de enzimas do tipo guanilato-ciclase, a partir da eliminação de pirofosfato (PPi) do GTP (guaninosina trifosfato - é um nucleotídio composto de uma ribose associada à guanina e a três grupos fosfato interligados, e que pode ter função de fosforilação de outras moléculas).
 
       O cGMP, entretanto, tem efeitos com duração limitada, uma vez que, findo o estímulo (por FNA, guanilina ou NO) para a sua produção, uma enzima do tipo fosfosdiesterase (PDE) hidrolisa-o a 5'GMP, que é inativo. Portanto, para que os efeitos desse segundo mensageiro sejam prolongados é necessário contínuo estímulo químico.

         
    Os efeitos do cGMP são mediados pela proteína quinase (ou cinase) dependente de cGMP (PKG). Essa proteína é constituída por uma única cadeia polipeptídica, no qual se encontram dois sítios - um regulador e outro catalítico. Inicialmente, parte do domínio regulador se acopla rigidamente à fenda do domínio catalítico, mimetizando a ligação com um substrato e tornando a enzima inativa. O cGMP é responsável por se ligar à enzima, o que permite o desligamento do falso substrato ao sítio catalítico, e ,assim, a enzima se ativa. Uma vez operante, a enzima é capaz de catalisar a fosforilacão de resíduos de serina e treonina em proteínas. Dependendo da proteína que é fosforilada, ela pode se ativar ou inativar, produzindo alterações metabólicas na célula.

      Dependendo do tecido em questão (e das proteínas que ele produz, bem como seu efeito ao ser fosforlada), o cGMP transmite diferentes mensagens. Nos rins e intestino, produz mudança no transporte iônico e na retenção de água. Nos rins, a guanilato-ciclase ativa-se por ação do FNA (fator natriurético atrial), um hormônio peptídico secretado pelo átrio do coração (quando este está expandido e pressionado em virtude de alto volume sanguíneo) e transportado pela corrente sanguínea até os ductos coletores. A ativação da guanilato-ciclase estimula a produção de cGMP, o qual aumenta a excreção de íons sódio e, assim, de água também, impulsionada pela variação da osmolaridade. Desse modo, o volume de urina aumenta, diminuindo o volume sanguíneo, o que reduz a pressão cardíaca. Esse efeito é potencializado pela presença de receptores da enzima para o hormônio nos músculos dos vasos sanguíneos. O cGMP induz a vasodilatação e, portanto, reduz a pressão e aumenta o fluxo sanguíneo.
      Já no intestino, as células epiteliais possuem receptores de guanilato ciclase na membrana citoplasmática que são ativadas por guanilina, um peptídio. O nucleotódio (cGMP) estimula a secreção do íon cloreto, inibindo a reabsorção de água pelo endotélio. Sabe-se que E. coli e outras bactérias gram-negativas produzem uma endotoxina que é reconhecida pelos mesmos receptores, induzindo uma elevada produção de cGMP, cujos efeitos em excesso geram diarreia.
        Tanto nas células renais e vasculares, quanto nas células do epitélio do intestino, há guanilato ciclases do tipo proteínas transmembrana (proteína que está imersa na membrana plasmática, atravessando-a por completo e tendo extremidades nas faces intracelular e extracelular). Na terminação externa, essas proteínas possuem receptores (ao FNA e à guanilina) e, na terminacão interna, sítios catalíticos responsáveis pela síntese de cGMP.
     Contudo, há um outro tipo de guanilato ciclase nas células do músculo cardíaco e vascular. Essa variação da enzima é solúvel em água e está completamente imersa no citossol. Além disso, possui um grupo heme[2], o qual, ao se ligar ao óxido nítrico[3] *, torna a enzima ativa, permitindo a síntese de cGMP. O mensageiro é capaz de estimular proteínas que bombeiam íons cálcio (essencias à contração muscular), removendo-os do citossol. Com isso, diminui-se o vigor das contrações do miocárdio, o que é útil para diminuir a pressão arterial. O óxido nítrico também é capaz de estimular o relaxamento muscular dos vasos sanguíneos. Os dois efeitos diminuem o esforço cardíaco, minimizando o consumo de oxigênio pelo miocárdio, o que atenua casos de angina do peito.




      O óxido nítrico (associado ao cGMP) tem ainda um papel de extrema importância no desenvolvimento da memória:
   Descobriu-se que, no hipocampo (uma região cerebral relacionada direta e profundamente com a memória), o estímulo elétrico contínuo e de alta frequência em um neurônio pré-sináptico[4] aumenta a amplitude da resposta do neurônio pós-sináptico. Esse processo é conhecido como LTP (do inglês, long-term potentiation -potencialização de longa duração). Acredita-se que o LTP seria, de acordo com a frequência e a duração do estímulo nervoso, um facilitador capaz de fazer o sistema nervoso armazenar conhecimento.
O mecanismo preciso de estabelecimento da LTP depende do aminoácido glutamato, o qual funciona como neurotransmissor, sendo liberado pelo neurônio pré-sináptico e se ligando aos receptores da membrana do neurônio pós-sináptico. Existem, basicamente, dois tipos de receptores para glutamato: NMDA (n-metil daspartato) e os AMPA (pelos quais são feitas a maior parte das transmissões sinápticas)[5]. O glutamato se liga aos dois tipos de receptores na célula pós-sináptica: por meio da ação dos receptores AMPA, a célula é despolarizada; isso permite a dissociação de íons magnésio do outro receptor. Sem esses íons (Mg2+), os receptores NMDA transportam íons cálcio (Ca2+) para o interior da célula. A entrada de cálcio ativa três tipos de proteínas quinases (enzimas que fosforilam proteínas) dele dependentes. Essas enzimas são responsáveis por estabelecer o LTP.
      No entanto, para que isso seja mantido é necessário que o neurônio pré-sináptico secrete continuamente o glutamato; mais especificamente, seria preciso um estímulo retroativo do neurônio pós-sináptico para o pré-sináptico. Pesquisas científicas tem demonstrado que as proteínas quinases conseguem, a partir de um conjunto de reações químicas, ativar a NO-sintase (a enzima responsável pela síntese de óxido nítrico). O NO produzido atravessa as membranas da célula pós e pré-sináptica, sendo que ativa nessa última a guanilato ciclase (iniciando a síntese de cGMP). Atuando como segundo mensageiro, o cGMP seria responsável por ativar os processos fisiológicos no neurônio pré-sináptico os quais culminam na secreção de glutamato. Por fim, notou-se também que o monóxido de carbono (CO) tem um papel semelhante ao do NO, como multiplicador dos efeitos sinápticos nos neurônios relacionados à memória.




Fontes:
https://en.wikipedia.org/wiki/Glutamate_receptors
Nelson, David L. Cox, Michael M. Princípios de Bioquímica de Lehninger. Porto Alegre: Artmed, 2011
Alberts, Bruce. Biologia Molecular da Célula; tradução Ana Letícia de Souza Vanz. 5a edição. Porto Alegre: Artmed, 2010.

[1] Mensageiros químicos (como os hormônios e o NO) muitas vezes não entram nas células ou, se o fazem, não são os responsáveis diretos por induzir uma mudança na ação de enzimas ou no metabolismo celular. Para fazê-lo, acabam estimulando a produção de um outro composto intracelularmente, sendo esses os responsáveis diretos por provocar alterações no comportamento celular. Essas substâncias, que fazem a transdução do sinal químico, são chamadas de segundos mensageiros. 


[2] Grupo heme é um grupo prostético de proteínas formado por um complexo anel orgânico (a protoporfirina IX) ligado a um átomo de ferro em estado de oxidação +2.

[3] O NO, por ser um gás apolar (lipofílico), consegue se difundir facilmente pela dupla camada de fosfolipídios da membrana celular. Desse modo, é plausível que a enzima ativada por ele não tenha um receptor na face externa da membrana.

* O óxido nítrico é produzido nas células endoteliais por estímulo da acetilcolina, um neurotransmissor secretado pelos nervos autônomos. Posteriormente, se difunde para as células musculares.


[4] Sinapse é o intervalo entre duas células do sistema nervoso que permite a passagem de um sinal (transmissão de um impulso nervoso). Em geral, são químicas, quando a mensagem é mediada por um neurotransmissor, mas podem ser também elétricas, quando a comunicação é feita pelo citoplasma das duas célula por meio de junções tipo fenda.


[5] Os receptores de glutamato (um dos principais neurotransmissores cerebrais) são proteínas que se dividem em dois tipos : os ionotrópicos (que agem como canais de cátions e se subdividem em: NMDA, AMPA - alfa-amino-3-hidroxi-metil-5-4-isoxazolpropiônico - e os receptores de cainato) e os metapotrópicos (acoplados a proteínas G, modificam as respostas dos canais de membrana e a concentração de segundos mensageiros).

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